Por Homero Santiago

Como se não fosse suficiente um único dia para celebrar o amor, mais e mais se trata junho como “mês dos namorados”. O interesse prioritário é do comércio, mas as pessoas não costumam ver nada de ruim no prolongamento: afinal, por que não estender para todo um mês aquilo que de tão bom, prazeroso e belo extrapola os limites de um só dia — o amor? Quero aproveitar o ensejo para falar um pouco do amor e de Amor, o afeto e o deus. De seu lado altivo, decerto, e também de suas ambiguidades, o claro-obscuro que inevitavelmente o atravessa.

Na Grécia antiga, amor era um deus poderoso: Eros. Nas palavras do poeta Hesíodo, na Teogonia, o mais belo entre os deuses, “solta-membros” de mortais e imortais, pois a ele se associavam tanto o ímpeto quanto o descontrole dos movimentos. Eros era força originária e animadora, um dos poderes primordiais que deu origem ao mundo tal como o conhecemos.

Foi principalmente pelas mãos de Platão que esse deus passou a ocupar um lugar de honra no panteão filosófico. No Banquete, um dos mais famosos diálogos platônicos, os convivas são instigados a discorrer sobre Eros: sua natureza, sua origem, seus poderes. O conjunto das falas é a matriz de questões e temas que vão marcar toda a reflexão sobre o amor e o desejo nos séculos vindouros, sendo ainda hoje relevante para determinar o modo como compreendemos e mesmo vivenciamos esses afetos. Sob esse aspecto, dois discursos merecem destaque.

Ao tomar a palavra, Aristófanes conta de uma época em que a nossa natureza era diversa; os humanos eram completos e se dividiam em três tipos: o masculino, o feminino e o masculino-feminino, o chamado andrógino; cada um possuía quatro braços, quatro pernas, dois rostos e uma cabeça. Acontece que o sentimento de completude (eram seres “inteiriços”) exacerbou os humanos a tal ponto que pretenderam confrontar os deuses. Em punição pela desmedida, Zeus os parte ao meio. Desde então, Eros é o impulso que move cada um a procurar a sua metade perdida; é a força capaz de nos reaproximar, quanto possível, de nossa anterior e saudosa completude, na “tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana”.

Noutro discurso, é Sócrates que narra a filiação de Eros, recordando o que lhe fora ensinado por Diotima. Amor tem um ser duplo porque é filho de Pobreza e de Recurso. Pelo lado da mãe, “é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar […]. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida”. Exatamente por situar-se nesse entre-dois, Amor é capaz de ligar humanos e deuses. Se a carência e o anseio de completude lhe são inerentes, igualmente o é a altivez com que inspira a produção de tudo o que é belo e bom, e especialmente impulsiona à busca do saber. Que o autodeclarado ignorante Sócrates, cuja sabedoria estava em não pensar saber o que não sabia, efetivamente conhecesse realmente Eros, não era dado casual. Sem o deus, é impossível a filosofia, que é precisamente uma forma de amor ou amizade (philia) pelo saber (sophia), o amor que nos conduz à parte mais magnânima de nosso ser.

Toda a ambiguidade do amor, e de nosso próprio ser na medida em que o vivenciamos, amando ou sendo amados, figura nessas narrativas. Por um lado, o sentimento de completude, possível pela descoberta e (re)união com a nossa cara-metade; por outro, a marca inconfundível de uma carência: os objetos de amor e de desejo, explica Sócrates, são aqueles que não possuímos e de que sentimos falta. Ou seja, buscamos a plenitude porque não somos mais plenos; filosofamos porque não possuímos o saber que desejamos.

Justo por tais ambiguidades, o modo como se vive a relação afetiva torna-se capital, já que podemos controlá-la ou sermos por ela controlados. O mesmo Eros pode dar origem a um amor ou desejo que nos fortalece, nos eleva, ou então a um amor ou desejo que nos submete ao fogo incontrolável da paixão e à desmedida. Num caso, condenamo-nos à satisfação efêmera, a sempre querer mais e portanto conviver com um sentimento de falta insuperável (o vício, uma forma de amor, ilustra bem isso); noutro, tomamos o rumo de um percurso ascendente, que promete o preenchimento e o contentamento característicos de um amor superior — o qual, para Platão, é o motor da própria filosofia — ou de uma vida feliz ao lado de nossas caras-metades.

Complexa condição erótica a nossa: entre a promessa de felicidade e uma decepção sempre à espreita; entre o bem-estar da satisfação duradoura e os furores capazes de destroçar os ânimos mais fortes. Será uma loucura? Os poetas sempre souberam que, mesmo repleto de ambiguidades, às vezes até contraditório, é assim o amor que nos encanta. Ora, para um deus desse tipo, talvez realmente não um só dia seja; ele precisa de pelo um mês inteiro para desfilar, dia após dia, suas múltiplas facetas.


Neste volume, Homero Santiago reconstrói a história filosófica da concepção do amor e do desejo, partindo da pergunta: amor e desejo são idênticos? Os mitos, Sócrates, Platão, a Bíblia, Agostinho de Hipona, Descartes, Espinosa e Freud são, entre outros, as principais referências deste livro instigante.

 

Homero Santiago é doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna da Universidade de São Paulo.

Imagem: The Lovers, Auguste Rodin – The National Gallery of Art(*)
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