Por Renata De Luca

Rick enxerga no novo trabalho a possibilidade de ter seu próprio negócio e fazer sua renda com autonomia. Na entrevista de admissão para uma empresa de entregas de encomendas, seu futuro chefe lhe propõe uma parceria que pode lhe render muita prosperidade, mas ele deverá assumir os riscos. A recompensa está atrelada a metas: quanto menor o prazo de entrega das encomendas, maior será seu bônus e se ele financiar uma van, pagará por algo dele, em vez de um aluguel. Para tanto, a solução foi vender o carro da esposa, cuidadora de idosos, para dar a entrada no financiamento. Van em mãos, hora de trabalhar, coisa da qual Rick não se furta. E a partir daí ele trabalha, trabalha e trabalha. Mas nada é suficiente para atingir os objetivos, os riscos inerentes ao negócio (multas, perdas, assaltos) ocorrem, consomem seu ganho e a pressão aumenta, tanto da empresa quanto da família, que sente a sua ausência; não demora para surgirem conflitos entre o casal e sérios problemas com o filho adolescente.

Esta é a trama do novo filme do diretor inglês Ken Loach, Você Não Estava Aqui (Sorry, We Missed You, 2020), que, com seu ritmo progressivamente angustiante, vem causando bastante discussão. Vemos em Rick os motoristas de aplicativos e os motoboys de delivery que tanto facilitam a vida nas grandes cidades e o mal-estar do espectador aumenta, pois demonstra os efeitos na vida pessoal que o esforço desmedido pode trazer, resumido pelo nome do filme, e levanta a bandeira sobre um tema atual: a precarização das relações do trabalho.

A pandemia do novo coronavírus colocou mais evidência no assunto, pois as consequências econômicas do isolamento social fizeram crescer o trabalho autônomo, o empreendedorismo forçado e as ocupações informais. Os dados evidenciam: segundo o IBGE, o PIB do primeiro trimestre de 2020 caiu 1,5% e a expectativa de queda se acentua, podendo chegar a até 5% no final do ano. As demissões cresceram 17% em relação ao mesmo período no ano anterior e o País perdeu 1 milhão de vagas CLT entre os meses de março e abril, segundo dados do Caged.

Com esses índices, o governo brasileiro, conhecido por conservadoras leis trabalhistas, por uma CLT ultrapassada em muitos aspectos e pela letargia quando se tratava de modernizar as relações de trabalho, teve de acelerar e lançar medidas provisórias que facilitassem a preservação do emprego. A MP 936 permitiu que empresas suspendessem contratos de trabalho, reduzissem salários e cargas horárias, recontratassem com salários menores e adiassem o pagamento de tributos, tudo isso sem obrigatoriamente precisar de acordos coletivos sindicais, com a contrapartida de não demitir. Essas medidas causaram temores para os trabalhadores e houve muitas críticas do prenúncio de uma precarização nas relações de trabalho.

Ao mesmo tempo, o aumento do desemprego e a diminuição dos salários levaram muitos profissionais que tiveram suas rendas bruscamente afetadas a buscarem soluções por conta própria, pois as chances de retorno ao mercado de trabalho convencional não estão fáceis. Alguns até profetizam que este será o gatilho para mudanças definitivas, com algumas novas formas que vieram para ficar, como a prática do home office e a diminuição do espaço nos escritórios. Nos próximos meses, o governo promete acelerar outras medidas que estavam em ritmo tartaruga, como a desoneração da folha de pagamento e a reforma tributária.

Uma herança certa é que as negociações entre patrões e empregados deverão se tornar uma prática, com menos interferência de órgãos reguladores. No jargão jurídico, diz-se que o acordado prevalecerá sobre o legislado. Isso, claro, traz temores e o principal está no desequilíbrio entre as partes, em que o lado mais fraco (geralmente o do empregado) se sinta pressionado a ceder pela necessidade do trabalho. Com a falsa sensação de autonomia, a jornada de trabalho aumenta, os riscos são próprios, os vínculos diminuem, assim como a proteção básica aos direitos trabalhistas. O cenário do referido filme está posto e, por se tratar de uma discussão ainda em curso, o final do filme (sem spoiler) faz todo o sentido.

Sabemos que algo irá mudar e é necessário que se faça, pois o Brasil, com suas enormes exigências patronais, não é amistoso à empregabilidade formal. Os custos são altíssimos, as exigências trabalhistas muitas vezes inexequíveis e a leitura do trabalhador como hipossuficiente fez crescer uma máquina de processos que levou o sistema a provar do seu próprio veneno: foram tantos excessos para proteger o empregador que dificultou o emprego. Empregar formalmente no Brasil é caro e desestimulante.

Portanto, mudanças são necessárias, mas garantias também. Modelos de falsas parcerias, exploração nas metas, ganho desproporcional ao esforço e balança pendendo de maneira desigual devem ser combatidos. O medo da precarização tem feito muitas pessoas refletirem sobre o assunto, que como tudo que é novo, traz inseguranças. Mas o temor não deve ser motivo para recuos e, sim, para aprofundar e construir mudanças seguras. Voltar atrás não é uma opção, pois ficaríamos ainda mais fora da economia global.

Também temos visto exemplos positivos de pessoas que montaram pequenos negócios, tiraram sonhos da cartola e estão se reinventando. É fundamental contarem com o apoio de instituições que amparam o pequeno empreendedor, cursos de capacitação e consultorias gratuitas ou subsidiadas, que ampliarão seus conhecimentos. Vale, como tudo na vida, a receita: preparar-se e capacitar-se para fazer dos riscos uma oportunidade.

Um outro filme de Ken Loach, Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake, 2016), abordou a dramática burocracia do sistema inglês para conceder benefícios ao marceneiro Dan, que havia sofrido um ataque cardíaco e teve seu auxílio-doença negado, e de Katie, jovem mãe solteira desempregada que não consegue requerer o seguro-desemprego. As histórias desses dois personagens são utilizadas para exemplificar o desmonte do papel do Estado como promotor de políticas do bem-estar social, implementadas na Europa após a Segunda Guerra Mundial e adotadas por muitos países, dentre eles, o Brasil.

Entre um filme e outro fica a certeza de que temos muito a avançar para que trabalhadores como Rick, Daniel e Katie tenham histórias mais bonitas para contar.

 


Renata De Luca

E-mail: [email protected]

Diretora de RH da Security Segurança e Serviços, psicóloga (PUC/SP), psicanalista (IP/USP), mestre em Educação (FE/USP) e MBA em Gestão de Pessoas (FGV).

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