Por Renata De Luca
Nos fins de semana, costumo caminhar ao sol em uma praça próxima a minha casa para sacudir um pouco o “bolor quarentenesco”, afinal, não há vitamina D que dê conta de um ano entocada entre quatro paredes. A praça é grande, tranquila, plana e com um extenso gramado cercado por árvores e banhado pelo sol da manhã.
Muitas pessoas, sozinhas ou em casais, fazem o mesmo, buscando um pouco de ar fresco e levando seus pets de todas as raças, cores e tamanhos para passear. Chama a atenção a proporção deles mediante a escassez de crianças: no último domingo, contei 12 pets e três crianças.
Sem a pretensão de fazer um estudo demográfico da população da Zona Oeste paulistana, observa-se um fenômeno interessante: casais estão preferindo pets às crianças e tratando-os como filhos, com o mesmo zelo, capricho e carinho.
Quando eu tinha minha filha pequena, há cerca de 20 anos, o cenário era inverso: muitas crianças nas praças e alguns pets. Atualmente não precisamos ir longe para lembrar de jovens casais que optam por não ter filhos, em contraposição à grande quantidade de petshops e novos serviços voltados aos animais domésticos que abriram nos bairros.
Vamos arriscar alguns palpites e razões:
– A vida anda custosa e, para viver melhor, o casal precisa somar renda. Isso faz pensar nas manobras que terão de ser feitas para acomodar uma criança. Um pet fica sozinho em casa, criança não. O investimento em cuidados com as crianças é muito maior. Os lares, ao menos nas cidades grandes, também estão verticalizados e menores, e crianças e seus apetrechos ocupam mais espaço.
– Pets são efêmeros, filhos não. Por mais que sofram imaginando um fim, os adultos sabem que seus queridos animaizinhos viverão em torno de 15 anos; já filhos são para sempre, o que pode parecer muito tempo nesta vida moderna, fugaz e prática.
– Educar dá muito trabalho, é repetitivo e exige postura. Cometem-se muitos erros, gerando culpa, evocando críticas, causando desavenças. Para educar uma criança, um adulto precisa crescer, assumir responsabilidades e lidar com incoerências internas originárias na relação com seus pais. Muitas vezes será flagrado fazendo o que criticou, será ocluído por pontos cegos e terá que refletir sobre sua posição de filho. Ou seja, é contínuo e árduo. Treinar um pet é mais fácil, menos trabalhoso, mais objetivo e muitas vezes terceirizado a profissionais.
– E, para mim, a maior das diferenças: ter um filho exige uma predisposição a correr riscos, pois trata-se de um investimento narcísico e em geral sai bem diferente do imaginado (ainda bem!). Há uma expectativa entre o que é feito e o resultado, e muitas divergências aparecem pelo caminho, conforme o filho cresce e assume sua identidade. Ter um pet é bem menos arriscado e não vejo as novas gerações com apetite para riscos.
Então, se vivemos em um mundo custoso, efêmero, de recompensa imediata, habitado por adultos superprotegidos e superprotetores e regido pela lógica das aparências, a adoção de pets cai como uma luva, deixando todos felizes. Eles dão posts lindos, preenchem a solidão, são afetuosos, trazem status e podem ser uma boa solução para a necessidade de afiliação, completando uma família e permitindo o exercício de um novo papel, o da “peternidade”. O fenômeno é tão presente que veterinários já alertam para os riscos de as espécies terem seus instintos comprometidos por excesso de mimos.
O aumento dos pets nos lares é acompanhado da diminuição das taxas de fecundidade. Na década de 1950, a média de filhos no País era de 6,2 por pessoa e na década de 2010, isso caiu para 1,8. A pandemia intensificou a queda, que em janeiro deste ano foi 14% menor em relação ao mesmo mês de 2020, que já havia sido 6% menor em relação a 2019.
Essa queda não é exclusiva do Brasil, mas observada em países desenvolvidos e está principalmente associada ao fato de as mulheres trabalharem mais, serem mais bem remuneradas, valorizarem a liberdade e a própria beleza. As taxas de natalidade diminuem enquanto a presença de pets nos lares aumenta, cunhando um novo termo para seus membros: a família multiespécies, em que casais cuidam dos peludos como filhos.
O último “Censo Pet” (IBGE, 2019) revelou que 48 milhões dos domicílios no Brasil têm cães ou gatos (46,1% são cachorros e 19,3% gatos) e, curiosamente, metade desses animais habita a Região Sudeste do Brasil. De cada 100 lares brasileiros, 44 possuem pets, porém, crianças menores de 12 anos estão em apenas 36 lares.
Se depender dos multiespécies frequentadores da praça perto de casa, já são quatro pets para cada criança. Vejamos…
Renata De Luca
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Diretora de RH da Security Segurança e Serviços, psicóloga (PUC/SP), psicanalista (IP/USP), mestre em Educação (FE/USP) e MBA em Gestão de Pessoas (FGV).