Por Marília Duque

Advertência inicial:

ESSE É UM TEXTO DE FICÇÃO CONSTRUÍDO A PARTIR DE UM FRAGMENTO DE EPISÓDIO REAL. NENHUM PERSONAGEM FOI NOMEADO FAZENDO QUALQUER MENÇÃO OU REFERÊNCIA ÀS PESSOAS QUE PARTICIPARAM DO EPISÓDIO NA ÉPOCA. SÃO NOMES ALEATÓRIOS E DEVEM SER CONSIDERADOS COMO TAL.

Pedro não conseguiu dormir. Levantou-se às cinco. Parecia ansiedade de aluno em primeiro dia de aula. Não era. Pedro estava ansioso porque ia reencontrar sua turma de faculdade para comemorar os 100 anos de formatura (sim, nessa época do futuro a expectativa média de vida no Brasil já era de 163 anos). Foi direto para o banheiro e se olhou no espelho, mas não para se ver. Ele estava preocupado com o que seus colegas iam ver, sobre como eles classificariam a sua imagem. Será que ainda seria considerado atraente? Será que ele envelheceu melhor do que os outros? Ou pior? Ele passou o dia dando volta nesses pensamentos até que chegou a hora. Tomou um banho demorado, vestiu sua melhor camisa (corte fit para ajudar a disfarçar a silhueta), calçou seu melhor sapato. Arrancou os cinco fios de cabelo branco que não conseguiu embaralhar entre os loiros. Sorriu para si mesmo no espelho. Ele já não era a mesma pessoa de manhã. Ele era de novo Pedro aos 18. E não importa se todo o resto, na vida, não saiu bem como ele tinha previsto. Ele era de novo Pedro aos 18. Confiante, engraçado, o cara que mantinha a turma unida. Já é, ele pensou, quando recebeu a notificação que seu Uber chegara.

O Carlos e o Diego também estão bem. Diego continua bombadão. Mas eu ainda estou bem também. Olha lá o Ricardo com a cabeça toda branca e o Sérgio, careca. É, acho que envelheci bem. A Clara também. Respira, relaxa, ela está vindo pra cá. Dava para perceber pela veia no pescoço que Pedro estava excitado com aquilo tudo. Mas não demorou muito pra ele se entediar. Clara logo perguntou o que ele tinha feito da vida, sobre como estava sua carreira. E foi assim com ela e com todo mundo. O problema é que Pedro não tinha lá grandes credenciais para colocar sobre a mesa. Quem estaria interessado em saber que ele herdou a fábrica de seu pai e que continua produzindo as mesmas máscaras que viraram um marco em 2020. De pandemia em pandemia, o retorno financeiro não era o problema, apesar de que, agora, o tempo para o desenvolvimento de uma vacina é em média 37 dias. De qualquer forma, não tinha nada de interessante naquilo. Eram ainda as mesmas máscaras. Enquanto isso, Paulo estava comemorando a 27ª edição do seu aclamado Marketing 18.0. E Ana levou o Nobel de Economia no ano passado.

Nobel, fala sério? Qual a probabilidade de você conhecer uma pessoa indicada ao Nobel? Ele pensou, com uma pontinha de inveja (Ana era um de seus crushes na época da faculdade). Foi quando ele teve uma ideia. Do seu IPhone LXXXI, ele projetou uma holografia no meio do bar onde estavam reunidos. “Não acredito que vocês acharam isso aí!”, Paulo gritou rindo. “Gente, tão real, parece que foi ontem!”, disse Ana enquanto se aproximava da projeção. E de repente estavam todos ali, rindo da reação da professora deles durante uma das primeiras aulas online dadas durante a Pandemia do COVID-19 no Brasil. O episódio viralizou na época e ficou conhecido como “Reconnecting”, quando toda a turma renomeou seu perfil para “Reconnecting” e a professora se desesperou achando que tinha perdido, de uma só vez, a conexão com todos os seus alunos. Mas, afinal, o que tinha de tão engraçado naquilo ali?

Nós não nos apresentamos da mesma forma para todas as pessoas. Ao contrário, para cada interação social, montamos um novo personagem. Escolhemos nossos pontos positivos, aqueles que achamos que serão apreciados por aquela plateia específica. Damos visibilidade, trazemos para o palco os recursos que temos para desempenhar nossa melhor performance, para convencer e gerar empatia. Aqueles traços que podem não ser tão bem vistos, esses nós deixamos ocultos, nos bastidores. Mas, vez ou outra, esses traços escapam, ganham visibilidade, e comprometem nossa performance. Mais que isso, eles contaminam nossa imagem, aquela que construímos cuidadosamente para a aceitação do outro.

Barthes chama isso do “pontinho no nariz”, ao analisar a alteração da imagem do ser amado. É “um gesto, uma palavra, um objeto, uma roupa, alguma coisa insólita que surge (que aponta) de uma região de que eu nunca havia suspeitado antes, e devolve bruscamente o objeto amado a um mundo medíocre”. Goffman, em sua teoria sobre a representação do eu no cotidiano, chama esses escapes de “atos involuntários”, ou seja, são elementos que escapam dos bastidores para a zona da performance contra a vontade do sujeito. É um peido barulhento (ou fedorento), um comentário fascista com o microfone aberto, ou o barulho da descarga no meio da conferência virtual da suprema corte americana[1].

Essa foi a mesma dinâmica observada no caso do Reconnecting. Quando todos os alunos trocaram seu nome de perfil para “Reconnecting…” e deixaram a tela preta, a professora teve a impressão de que a interação com eles estava suspensa. Ou seja, ela não estava mais na zona do palco, ela relaxou a autovigilância necessária à sua performance e deixou seus sentimentos virem à tona, sem filtro. Ela não imaginava, porém, que os alunos ainda a estavam observando (e gravando a cena). Ou seja, durante alguns minutos, eles tiveram acesso aos bastidores, àquele espaço privado que é também o momento de intimidade que marca a pausa entre interações. Afinal de contas, as performances sociais dão trabalho, exigem esforço, cansam. Para a pessoa flagrada, a experiência pode ser ao mesmo tempo constrangedora e comprometedora. Para a plateia que presencia um “ato involuntário”, a surpresa geralmente resulta em riso, porque é algo inesperado. E foi o que aconteceu novamente. Lá estavam todos eles juntos, de volta ao primeiro ano de faculdade, compartilhando o mesmo riso que uniu a turma pra sempre.

Foi Paula quem puxou o assunto. “Gente, alguém tem alguma notícia dessa professora?”. Ninguém tinha. O vídeo foi fácil de encontrar justamente porque a internet tem duas características: a buscabilidade e a persistência. Ou seja, uma vez publicado, o conteúdo pode ficar disponível pra sempre e pode ser facilmente encontrado via mecanismos de busca) e recolocado em circulação, atualizando sua visibilidade, mesmo que fora de contexto. Mas notícias sobre a professora? Bem que eles tentaram. Mas ninguém lembrava o nome dela. Afinal, ela era “a professora do Reconnecting”. Sem perceber, há décadas atrás, a turma havia produzido um estigma. O estigma é um mecanismo que permite uma economia de análise ao mesmo tempo que é um estímulo que condiciona nossa resposta.

O mesmo Goffman que tratou dos atos involuntários escreveu sobre esse tema. Originalmente, entre os gregos, os estigmas eram marcas físicas que permitiam a identificação de uma pessoa no espaço público. O reconhecimento dessas marcas permitia uma economia classificatória no olhar. O indivíduo não precisava emitir um juízo sobre aquela pessoa. O estigma já sinalizava esse julgamento ao mesmo tempo que condicionava a conduta esperada, pela sociedade, em relação àquela pessoa. E assim eram marcados ladrões, escravos e prostitutas. Atualizados, os estigmas vão além da marca física. Eles também são construídos culturalmente (e muitas vezes baseados em preconceitos ou injustiças). Por exemplo, os idosos podem ser vistos como “à toa”, ou “incapazes”, porque durante décadas a aposentadoria acionava o estigma da improdutividade.

E se o mecanismo do estigma tem um lado positivo é esse: ele é em si um mecanismo de defesa. Imagine se todos os dias pela manhã tivéssemos que redescobrir todos os perigos que podem colocar em risco nossa sobrevivência como espécie. A cultura nos polpa esse trabalho, uma vez que aquilo que aprendemos é repassado para as novas gerações, para que essas possam se ocupar de outras coisas. Caso contrário, todos os dias ainda estaríamos reinventando a roda, ou tentando dominar o fogo. Mas essa economia tem também um lado perverso e degradante. É esse lado que Goffman vai questionar. O estigma geralmente se baseia em um traço ou um elemento (visto como pejorativo) do indivíduo estigmatizado. O problema é que o estigma contamina toda a identidade do sujeito. Ou seja, o estigma passa a ser o sujeito por completo.

No caso da “professora do Reconnecting”, pouco importa se durante o ocorrido ela estava dividindo sua atenção com a filha doente. Pouco importa que ela fosse, além de professora, mãe. Pouco importa que ela preferisse rúcula ao invés de agrião. Pouco importa que ela reciclasse o lixo da sua casa. E também pouco importa o fato de que, anos mais tarde, ela criou uma fundação contra cyber bullying. Da mesma forma, pouco importa que ela tenha falecido sendo a avó mais feliz do mundo, porque ela era simplesmente apaixonada por suas duas pequenas, a Júlia e a Maria. Toda sua identidade (e sua história) foi reduzida a um único episódio que a definiu pra sempre. Ela continua viva, online, buscável e encontrável como a “professora do Reconnecting”. E só.

Cansados de buscar por notícias da professora, Sérgio deu uma ideia. “Põe turma do Reconnecting. Vê se aparece alguma coisa”. E apareceu. Estavam lá, todos eles, reconectados pelo estigma que também os acompanhou nos tempos da faculdade. E pouco importa tudo o que eles fizeram na vida. Naquele momento, naquele bar, eles eram inteiros a “turma do reconnecting”. Somente isso e nada mais.


Marília Duque

Publicitária graduada pela ECA-USP, é mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pelo PPGCOM-ESPM.
Estuda reputação conectada em rede, ou, em outras palavras, quer saber se no Facebook vale a máxima: diga-me com quem andas e te direi quem és. É também a criadora da campanha Anjos no WhatsApp e de dois protocolos para aplicação de WhatsApp para a saúde, frutos de seu doutoramento, também na ESPM. É a pesquisadora brasileira do estudo global Smartphone, SmartAgeing e passou 16 meses aprendendo como os idosos de São Paulo usam smartphones para reinventar a velhice.

Texto originalmente publicado por Marília Duque em https://eticadebolso.com.br/o-primeiro-reconnecting-a-gente-nunca-esquece/

REFERÊNCIAS:

BARTHES, Roland. Fragmentos de um Discurso Amoroso. Rio de Janeiro: Franscisco Alves, 1994.

DEBERT, Guita Grin. A Reinvenção Da Velhice: Socialização e Processos de Reprivatização Do Envelhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo : FAPESP, 1999.

[1]https://mashable.com/article/toilet-flush-supreme-court-livestream/

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