Por Gustavo de Oliveira

No último mês de dezembro completaram-se 26 anos do lançamento de Sobrevivendo no Inferno, o clássico disco do grupo Racionais MC’s. Talvez na época seu impacto e status na música brasileira não fosse esperado, mas mesmo assim ele já era um dos maiores registros fonográficos de que se tem notícia. Sua relevância não se resume aos números comerciais, que colocaram o rap nacional em um patamar nunca atingido, e sim ao demonstrar a possibilidade de redefinir a cultura periférica, atribuindo a ela adjetivos como “potência”, “didática” e “criatividade”.

Apesar de serem reconhecidos e reverenciados pelos mais próximos da cultura hip-hop, em 1997 os Racionais ainda não tinham atravessado (simbolicamente) a ponte João Dias, que separa o Capão Redondo de outras regiões de São Paulo. Entretanto, o espaço que logo seria ocupado pelo disco foi conquistado de maneira independente, criando uma relação original com a arte e com a indústria.

Nesse contexto social, Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay direcionaram sua obra para um discurso que abordava a necropolítica, a guerra às drogas e o abandono do Estado. Não era a primeira vez que a questão racial aparecia na música nacional. Mas, ainda assim, foi um dos primeiros passos de afronta artística a essa violência de maneira mais ativa e contundente.

Porém, não foi só o retrato nu e cru da realidade que aproximou milhões de pessoas dessa obra. Foi a sensibilidade de seus autores, ao se colocarem não como representantes, mas como integrantes ativos das periferias paulistanas. A linguagem utilizada pelos integrantes do grupo os colocou como um modelo a ser seguido, por se aproximar daqueles que dividem seus problemas. Um farol de esperança no meio de um mundo voraz e sombrio.

Entretanto, o que realmente posiciona o Racionais nesse lugar próximo de seus ouvintes são suas confusões e fragilidades, com inúmeras e diferentes referências religiosas, que atravessam o cristianismo e chegam às religiões de matriz africana. Não de forma sincretizada, mas sim de quem tem contato constante com todas essas manifestações nas periferias. Uma maneira de demonstrar que há espaço para todos dentro de um discurso de luta e liberdade.

As contradições servem também para abandonar o tom professoral que uma obra com tantas lições poderia ter. Mesmo com toda a força do discurso, o disco ainda se apresenta como um afago amigo para quem precisa e compartilha as dores relatadas. Um diálogo entre quem produz e quem escuta, para, juntos, superarem os traumas causados pelo racismo e pela violência. Tudo isso por meio de histórias que podem ser ouvidas e identificadas por qualquer um que seja próximo ou não do dia a dia das periferias.

Atualmente, Sobrevivendo no inferno faz parte da lista de obras de leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp. Essa não é a única comprovação de sua relevância, porém demonstra que, 26 anos depois, o relato de vida de quatro homens negros da periferia de São Paulo mudou a música e a intelectualidade brasileira.


Gustavo de Oliveira
Graduando em Jornalismo pelo Centro Universitário Carioca e técnico em administração. Redator desde 2018 com experiência em música e jogos.

Share: