Por Isabel Ramos

Oh, Deus! Que eu possa estar vivo quando morrer.
(Donald Winnicott)

Onde começamos nós e termina a influência de tantos, já dizia Lya Luft, escritora e tradutora brasileira, e neste enredo proclamo que sou muitas, eis que fruto de infindáveis eventos e relacionamentos. Vale ponderar, em complemento, que a chegada ao mundo, em teoria, se fez nua de vestes e crenças, e à medida que fui inserida em uma grande teia de símbolos, observei padrões sendo construídos e eles permitiram um caminhar rumo a uma vida que denomino metamórfica.

Nesse contexto, o propósito maior é compartilhar quais são os insumos que sustentam a busca pela vontade de sentido. Para tanto, a partir desse traço narrativo, seguem linhas que não têm a pretensão de exaurir, tampouco de trazer pontos finais, mas que tocam minha alma como um vento fresco que vez ou outra leva pesos que não têm potencial gerador de vida, bem como traz insumos que motivam e impulsionam o acordar.

Sou um pedacinho da natureza manifesta em um corpo humano em passagem por este mundo. Sou ainda muitas outras coisas, mas também estou outras tantas. E é exatamente essa dualidade constante entre ser e estar que me dá forma sem, contudo, ser obra acabada, apenas esboça o que o porvir há de descortinar. Em minhas tantas formas e contextos, coloco que variados assuntos já foram temáticas que compuseram minha história, digo, da minha relação com o outro, dentre elas, alcoolismo, epilepsia, divórcio, assédio moral, assédio sexual, aborto, mortes, isso mesmo, no plural, preconceito…

E não menciono isso com o objetivo de vitimizar-me, mas, sobretudo, por reconhecer que o aprendizado cujas bases foram o sofrimento, via de regra, costuma ser mais efetivo enquanto potencial transformador. Desse modo, busco apropriar-me da lucidez que tais experiências trouxeram e faço com que minhas ações sejam manifestações mais coerentes na medida em que encontram-se alinhadas com os meus valores.

Vale ponderar, contudo, que em oposição à carga desafiadora dos acontecimentos acima citados, foi justamente uma importante lista, a qual nomeio de pílula mágica, que me permitiu chegar até aqui como uma amante da vida e das pessoas, a exemplo, mas não limitando-se a sentir-me amada, ter o hábito de fazer diário, ter amizades verdadeiras, ser mãe, ter um corpo saudável etc.

Assim, feitas as considerações que tiveram por condão trazer um cenário, eu coloco que o movimento que me dá pulso à vida é o da desconstrução, é o do despojar-me dos dogmas postos pela cultura que normatizam o luto ou a desilusão como algo negativo ou nocivo. “Não se trata, portanto, de injetar sentido nas coisas, mas sim de extrair o sentido delas, de captar o sentido de cada uma das situações com que nos defrontamos” (Viktor Frankl).

E essa tem sido minha pedra angular, questionar as premissas tão habilmente implantadas em nosso modo de pensar e, portanto, fazer com que o fruto disso seja a construção que permita um novo olhar e, por consequência, um novo sentido que dê potência e vivacidade ao instante que se convencionou chamar de presente.

Vale ponderar, complementarmente, que experimentamos, ao longo de nossa existência, enquanto sujeitos, uma certa variedade de lutos, ou seja, vivemos várias formas de interrupções de vínculos e mesmo de convicções. Decorre que este é um assunto que se encontra, mesmo em tempos ditos contemporâneos, no rol dos tabus. O que faz com que, inevitavelmente, não seja um ponto focal a ser desbravado e desenvolvido a ponto de desmitificar-se e trazer o senso urgente de finitude à vida humana, clareza que, a meu ver, seria fundamental para que o propósito de cada um pudesse ser pauta permanente na agenda humana, e, com isso, o indivíduo ser capaz não só de atestar sua capacidade evolutiva, biologicamente falando, mas sobretudo espiritualmente.

O luto é democrático, toca a todos indistintamente. Assim, o tema ganha proporções para além da minha própria degustação de vida. O Brasil carrega atualmente o título de nação mais ansiosa do mundo e a quinta mais depressiva. A finitude é ignorada sob todas as formas, e nós estreamos o século XXI inseridos no que se denomina como a Quarta Revolução Industrial, caracterizada por inteligência artificial, internet das coisas, armazenamento de energia, biotecnologia, veículos autônomos e as mais variadas inovações. E daí? Almejamos a imortalidade, nosso maior desejo consumista é comprar horas extras, mas o número crescente de suicídios, aliado à aterrorizante posição de país ansioso e depressivo, deflagra que algo não vai bem.

É nesse enredo paradoxalmente mórbido e vivido que eu trago como testemunho que, apesar de ter tido a minha passagem permeada por perdas de pessoas amadas, fora do contexto pandêmico, vale frisar, e mesmo de ter sido convidada por algum motivo da minha existência a passar por eventos cujo drama social é impregnado de perniciosidade em sua origem, que estes trouxeram mergulhos muito profundos e, não raro, feridas cuja cicatrização levaram anos, ou mesmo muitas sessões de terapia para que pudessem ser tocadas e, portanto, tratadas.

Apenas na minha trajetória, eu compartilho que venho sendo minha própria cobaia, pois à medida que retorno dos mergulhos, ora ofegante, ora totalmente sem pulso, ora hipotérmica pelas águas gélidas, de todo modo, até aqui, sempre com um fio de vida suficiente para me fazer nadar até a borda tangível e lançar mão de todas as formas de resgate disponíveis constantes em meu ferramental. Ao estudar a logoterapia, e mais profundamente a psicologia positiva, constatei que há, como diria o dito popular, uma luz no fim do túnel, uma vez que a ciência passa a não apenas dedicar-se aos sintomas, aos transtornos, mas também e, concomitantemente, às fortalezas natas ou não das pessoas. Essa é, a meu ver, a grande disrupção, talvez a mais importante das descobertas da atualidade, pois nos coloca diante da possibilidade de um protagonismo genuíno na grande obra, tornando-nos singulares, e não mais um a integrar o comportamento de manada.

Por fim, digo que existem feridas cicatrizadas em mim e que, apesar de fechadas, vez ou outra ainda doem. Existem medos que percebo ainda me aterrorizarem, pois fazem visitas aos meus sonhos, vez ou outra. Existem ilusões perdidas que vieram com um mar de lágrimas, vínculos desfeitos que deixaram saudade e outros que libertaram, e é justamente ter tido a coragem para encará-los de frente que me possibilitou descobrir que havia em mim muito mais do que um bote salva-vidas, que eu era proprietária de uma grande e fabulosa fábrica de habilidades que estavam sufocadas e enfraquecidas por uma cultura dominante cujo interesse é fazer do homem uma espécie de massa de manobra, porém não forte o bastante para me deter no ímpeto de romper e edificar minha própria realidade.

Coragem advém de coração (cor/cordis – latim). O presente texto não é sobre vitimismo ou heroísmo. É antes, contudo, sobre humanidade, sobre forças que nos compõem enquanto ser humano. Diz respeito a voltar o olhar para os ciclos da natureza que revelam que, apesar da moradia ameaçada de despejo, como bem escreveu Sigmund Freud, pouco antes de morrer, para Lou Salomé, que há beleza na passagem. E, finalmente, que não precisamos ser imortais ou infalíveis para sermos capazes de viver um enredo eudaimônico, mas que é justamente a consciência das nossas fragilidades e falibilidades que nos coloca em uma relação mais íntima com a integralidade do nosso ser. Que o presente pensar não seja sentença, mas que em sua essência alcance a transcendência.

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