Marcella Erédia*
Resumo: a presença feminina na filosofia brasileira é muito recente. Pode-se dizer que ela inicia-se em 1810, com Nísia Floresta. De lá para cá outras filósofas importantes surgiram e além de tratarem da questão feminina, preocuparam-se com as minorias e marginalizados pela sociedade dominante.
Palavras-chave: Filosofia. Filósofas. Educação. Sociedade brasileira.
Certa vez, durante uma atividade em sala de aula, um professor propôs um exercício aparentemente simples: responder à pergunta “Quantas filósofas brasileiras você conhece?”. O silêncio que se seguiu podia ser facilmente confundido com o cansaço de uma quarta-feira à noite, o pior dia da semana para quem trabalha, mas na verdade refletia algo muito mais triste: a ausência feminina no referencial comum. Uma violência velada, que até os dias de hoje persiste e dificulta a ocupação de determinados espaços. Uma história construída por homens em que as mulheres que pensam terminam queimadas.
É claro que hoje as fogueiras existem apenas no sentido figurado — foram substituídas por explicações pseudocientíficas e discursos meritocráticos. Artimanhas de uma sociedade que sempre quis preservar a mulher no trabalho operacional, preferencialmente dentro de casa, enquanto o homem se ocupa dos saberes, da vida pública e da atuação política.
Mas, apesar de todas essas dificuldades, e da disparidade histórica entre homens e mulheres na produção de textos e obras, é preciso lembrar que nossas filósofas existem e resistem. São mulheres que contribuíram ativamente para a educação no Brasil e abriram caminho para que novas gerações pudessem ir sempre além. Vejamos algumas delas.
Essa primeira geração de pensadoras foi muito importante para a construção das bases que garantiriam a crescente presença da mulher não só no mundo acadêmico, mas na produção filosófica.
Em 1810, logo após a chegada da família real ao Brasil, nasceu Nísia Floresta. Natural do Rio Grande do Norte, viveu em diferentes estados e chegou a morar na Europa, onde conviveu com Augusto Comte, filósofo que inaugurou o pensamento positivista. Inspirada por suas ideias, Nísia fundou, aos 28 anos, uma escola para meninas no Rio de Janeiro, onde lecionou filosofia. Foi o início de uma nova fase, em que a mulher poderia estudar.
Nísia Floresta é considerada a primeira feminista do Brasil e também a primeira mulher a publicar textos em jornais. Em suas obras, questionou o papel social das mulheres e defendeu direitos para negros e índios. Foi perseguida a vida toda, mas nunca deixou de produzir. Foi alguém à frente de seu tempo e, infelizmente, esteve longe de ver a primeira mulher presidente. Morreu em 1880, alguns anos antes da proclamação da República no Brasil.
Nísia foi contemporânea de outra pioneira, Maria Firmina dos Reis, nascida em 1822 no Maranhão. Diferentemente de Nísia, era negra e filha bastarda, traços que evidenciam o tamanho de seus feitos diante de uma sociedade que estava pronta para agredi-la.
É conhecida como a primeira mulher a publicar um romance no Brasil. O livro Úrsula, de temática abolicionista, ficou famoso por humanizar personagens negros e escravos. Além de escrever, dedicou sua vida a lecionar para crianças. Seus trabalhos contribuíram para o aumento do número de meninas nas salas de aula e para a difusão do pensamento feminista e negro no Brasil.
Essa primeira geração de pensadoras foi muito importante para a construção das bases que garantiriam a crescente presença da mulher não só no mundo acadêmico, mas na produção filosófica. Um século mais tarde, o cenário já era muito diferente. Apesar de a presença masculina ainda ser dominante, as mulheres puderam se destacar.
Creusa Capalbo foi uma delas. Nascida em 1934 no Rio de Janeiro, formou-se em filosofia na Bélgica e passou a lecionar em universidades brasileiras. Foi um dos grandes nomes da fenomenologia no país, corrente que fez muito sucesso entre psicanalistas e psiquiatras, e atuou na Academia e Instituto Brasileiro de Filosofia, entidades que coordenaram e fomentaram o crescimento da produção filosófica no Brasil.
Em 1941 nasceu a paulistana Marilena Chauí, considerada a mais importante filósofa brasileira, dadas as dimensões de seus trabalhos. Especialista em Baruch Espinosa, escreveu obras que são amplamente adotadas no ensino da filosofia. É professora da USP desde a década de 1980 e presidente da Associação Nacional de Estudos Filosóficos do Século XVII.
Marilena, além de professora e pesquisadora, é historiadora da filosofia. Sua atuação política também foi fortemente marcada por seu envolvimento com o Partido dos Trabalhadores desde a sua fundação. Foi líder da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e tornou-se conhecida fora do meio acadêmico. Continua atuante, produzindo e incomodando, como boa filósofa que é.
Em 1964 nasceu outra pensadora que também se destacou — Viviane Mosé. Natural de Vitória, é educadora, filósofa, poetisa, psicóloga e um dos grandes nomes da área de políticas públicas no país. Tornou-se mestre e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde se especializou nos trabalhos de Nietzsche. Tem forte presença nas redes sociais, onde suas palavras atingem um grande número de pessoas.
Pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul passaram duas pensadoras que também contribuem ativamente para o cenário nacional. Uma mais timidamente, afastada das câmeras, enquanto a outra é conhecida pelas grandes mídias.
A primeira é Neusa Vaz e Silva, nascida em Porto Alegre, que se especializou em filosofia latino-americana, interculturalidade e identidade. Em seus trabalhos busca compreender como as culturas interagem e se sobrepõem no mundo globalizado. É membro fundadora da Associação Sul Americana de Filosofia e Teologia Interculturais, que tem por objetivo levar a produção filosófica para além dos limites da academia.
A segunda é Marcia Tiburi, a filósofa mais jovem dentre todas as citadas. Natural do Rio Grande do Sul, também atua como artista plástica, professora, escritora e ativista. Ficou conhecida graças a publicações acerca de temas feministas, que se disseminaram para uma nova geração de mulheres e meninas interessadas em quebrar antigas correntes do passado. É ainda conhecida pela forte presença na internet e pela participação em mesas de debates e programas de televisão.
Em suma, é errado pensar que existem poucas mulheres na história da filosofia brasileira. Além desses, muitos outros nomes contribuíram enormemente para o desenvolvimento da educação e da pesquisa desde o princípio do país. É certo que há muito que avançar, a começar pela difusão e presença de nossas filósofas nas salas de aula. Elas precisam ser lidas, ouvidas e ensinadas, para que todos saibam sobre essa trajetória de luta, e para que as nossas meninas nunca parem de sonhar com um mundo cada vez mais justo.
*Marcella Erédia é aluna do Bacharelado em Relações Internacionais e Filosofia da Universidade Federal do ABC